Copa do Mundo e palavras

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 19/06/2018 03:00 Atualizado em: 19/06/2018 08:41

Cecília Meireles escreveu, no romance LIII, intitulado Das Palavras aéreas, nessa obra-prima que é o Romanceiro da Inconfidência, uma meditação sobre o poder das palavras sobre nós: “Ai palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa.” Ela se refere à sentença que julgou Tiradentes e os demais inconfidentes, condenados pela fala leviana do povo, pela boca dos juízes a serviço do inimigo. Mas os versos tocam o leitor muito além do fato histórico, pelo poder encantatório dos vocábulos, pelo arranjo das frases, pela musicalidade, repetições, diferentes regimes de fala ( diálogos, reticências, interrogações) todas essas coisas que fazem de um texto poético algo que tem sobre nós, um poder misterioso, quase mágico. Pensei em como Cecília tem razão (os bons poetas sempre têm razão), e muito banalmente me deixei levar por certas palavras relacionadas imaginem, com a Copa do Mundo. Dirá o leitor: que tem a ver a Copa com a poesia? Nada. Mas palavras ouvidas aqui e ali, nomes de cidades, de pessoas, estabelecem relações, evocam  imagens, leituras várias, criam e recriam situações, um mundo de sugestões ressuscitando parte do depositário que somos, amontoado através dos anos, das experiências, das vivências que faz de cada um de nós um sujeito único. Dá pra entender? Alguns exemplos. O Brasil jogou em Rostov. O nome lembra a Condessa de Rostov, personagem de Guerra e Paz, de Tolstoi, linda e maravilhosa no filme que o cinema inglês reconstruiu há uns anos. E pensando em Tolstoi, nos vem a visita que Lou Salomé e Rilke fizeram ao autor de Anna Karenina, e a beleza dos campos ao redor de Iasnaia Poliana  (acho que não é assim que se escreve) com seus camponeses aos quais o Conde  intentava doar terras, ao que se diz. E pensando em como Tolstoi mergulhou fundo no coração humano,  com ironia ou compaixão como não pensar em outro gênio russo, Tchekov, também refazendo a alma de camponeses em A Estepe, e que inspirou cineastas e montagens teatrais mais que lindas, em várias partes do mundo, como foram feitas com As três irmãs (Odile Versois e Marina Vlady eram duas delas), com O cerejal, levado à cena por Laurent Terzieff em Paris e aqui no Recife numa montagem que não ficou atrás daquela de Terzief nem da que vimos há anos em teatro da Gávea, no Rio. Outra nome de cidade russa relacionada com a Copa: Kazan. Em Kazan houve lutas, conquistas ou reconquistas, admiravelmente refeitas por Eisenstein, penso que em Ivan o terrível que esse monstro do cinema imaginou e que desagradou a Stalin, fazendo quase cair em desgraça do autor do genial O Couraçado Potemkine. Semana que vem, o Brasil joga em São Petersburgo, cenário das Noites Brancas de Dostoievski, do homem sem sombra de Gogol (?), das caminhadas doloridas  às portas das prisões, de Anna Akhmatova, em busca do filho preso pelo regime. Ai, como alguém pode estar tão cheio de  literatura a esse ponto, e como a literatura enriquece nossa visão do mundo!

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