Traiçoeiras vírgulas

José Paulo Cavalcanti Filho
Jurista e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 18/05/2018 03:00 Atualizado em: 18/05/2018 08:49

O governo cancelou mesmo aquele slogan com que pretendia se auto elogiar – O Brasil voltou, 20 anos em 2. Inspirado no 50 anos em 5, de JK. E ainda bem. Que pegaria mal, caso a vírgula fosse cortada. Seria, então, O Brasil voltou 20 anos em 2. Um desastre. Lembro algo parecido. Quando, no início dos anos 1970, um capitão do Exército se vangloriou. Ao dizer ter visto, no parachoque de um caminhão, Médici, o povo pelo Presidente. Olhando bem para ele, perguntei: “Tinha mesmo essa vírgula?” Pareceu não entender. E até agradeci, por isso. Que, sem ela, a frase seria pronunciada de outro jeito, Mede-se o povo pelo Presidente. E eu, com o histórico que tinha, iria em cana.

Com relação às vírgulas, tudo começou na Grécia antiga. O templo de Apolo ficava nas encostas do monte Parnaso. E lá funcionava o Oráculo de Delfos, em que vivia sacerdote conhecida como pitonisa (pítia, serpente, seria o nome original do deus Apolo). Investigações recentes sugerem que, de fenda no rochedo, àquele tempo sairia um gás – etileno, metano, sulfato de hidrogênio (não dá mais para saber, depois de um terremoto) –  que provocava o frenesi da pitonisa. Fazendo com que fizesse previsões ininteligíveis. No episódio mais famoso, Alexandre Magno queria saber o destino que teria em guerra próxima. Ela teria respondido “irás voltarás não morrerás lá”. Interpretado, pelo interessado, como “Irás. Voltarás. Não morrerás lá”. Só que Alexandre deixou seu jovem corpo enterrado na Babilônia (atual Iraque). E os generais foram pedir explicações. A pitonisa só completou a pontuação do texto, que ficou assim: “Irás. Voltarás? Não. Morrerás lá”.

Fernando Henrique Cardoso foi outra vítima do mal uso das tais vírgulas. Numa entrevista escrita, perguntaram se ele iria privatizar a Petrobrás. Sua resposta, curta, foi publicada assim: “Eu não sou contrário à privatização da Petrobrás”. Barulho grande. E apenas depois do estrago feito, esclareceu que era o contrário. Faltava uma vírgula, na sua frase, que mudava tudo: “Eu não, sou contrário à privatização da Petrobrás”. Por falar em vírgulas, elas só não faltam mesmo em José Saramago. Que usa, em média, 20 por frase (21 no Evangelho, 19 em Caim).

Slogans são sempre complicados. Em 1959, passou a funcionar o Metropolitano de Lisboa. Pronuncia-se METRO (como a medida de distância); e não, como na França, METRÔ. Escolhido para fazer o slogan, apesar de vez por outra ser preso pela PIDE (de Salazar), foi o poeta português Alexandre (Manuel Vahia de Castro) O’Neill. Contratado e pago, seu slogan foi Vá de Metro, Satanás. Obviamente inspirado na fórmula do exorcismo da Igreja Católica. O mesmo dístico que, desde 1789, vem gravado no verso das medalhas de São Bento, VRSNSMV (do latim Vadre Retro Satana Nunquam Suade Mihi Vana – Retira-te, Satanás, nunca me aconselhes coisas vãs). Apesar de tão instigante, a administração do METRO vetou a publicidade. É pena.

E não é caso único de slogan vetado. Em 1985, no início da campanha de Jarbas à Prefeitura do Recife, houve reunião em sua casa. O marqueteiro paulista da PROPEG apresentou o material preparado, começando por outdoor inspirado em Blaise Pascal (Pensées): O coração tem razões que a própria razão desconhece. Depois, a frase foi muitas vezes adaptada por Gilberto Freyre. Mas essa é outra história. Certo é que acabou popularizada por uma velha marchinha (Aos pés da cruz) de Marino Pinto. Aplausos gerais. Foi quando Lailson, gênio da raça, pegou seu lápis, sem dizer uma palavra, e, continuando os versos (não de Pascal mas) da música, grafitou o outdoor: Faz promessas, e juras, depois esquece. Risos gerais. E campanha no lixo.  Pensando bem, taí um slogan bom para o pessoal de Brasília: Governo Temer: O que faz promessas, e juras, depois esquece.

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