O papel da habitação social na requalificação dos centros urbanos

Zeca Brandão
Arquiteto e urbanista, PhD pela Architectural Association School of London e professor associado da UFPE.

Publicado em: 07/05/2018 03:00 Atualizado em: 07/05/2018 10:29

Mais uma tragédia anunciada ocorreu em consequência do descaso absoluto do poder público. O simbolismo da data -1° de Maio, Dia Internacional do Trabalhador - não poderia ser maior. Estima-se que cerca de 150 famílias, provavelmente excluídas do mercado de trabalho formal, moravam de forma irregular no edifício que desabou no centro de São Paulo. O edifício em si apresenta-se como um dos principais ícones do modernismo, movimento arquitetônico que, ironicamente, trouxe o tema da habitação social para a agenda teórica e prática dos arquitetos. Um drama simbólico para alguns, mas com consequências bastante concretas para os moradores do edifício.

Como todo fato ocorrido no país desde a última eleição presidencial, as mídias sociais parecem ratificar a postura maniqueísta da opinião pública brasileira. Uns assumiram a “teoria da conspiração” e acusaram a “burguesia reacionária” de provocar o incêndio com o objetivo de “higienizar” os centros urbanos, enquanto outros “criminalizaram” as vítimas, que ocuparam o edifício por não terem outra alternativa, culpando-as de causar o acidente através de instalações inapropriadas e ilegais. Até quando iremos nos apegar a essa visão simplista que nos impede de pensar uma cidade melhor e mais justa, que realmente ofereça qualidade de vida à todos os seus moradores? Serão precisos outros desabamentos - só na cidade de São Paulo existem mais de 200 ocupações como essa – para abdicarmos da cegueira ideológica em prol de uma postura mais técnica e responsável?

Para enfrentar o imenso déficit habitacional brasileiro, que hoje gira em torno de 6 milhões de moradias, o governo federal propôs um programa habitacional anacrônico chamado Minha Casa Minha Vida. Esse programa tem repetido os mesmos erros cometidos pelos programas habitacionais implementados entre as décadas de 60 e 80 (BNH), ao afastar progressivamente as classes menos favorecidas dos centros urbanos. Milhares de casas estão sendo construídas na periferia das grandes cidades, enquanto um imenso estoque imobiliário permanece abandonado nas áreas centrais, que, por sua vez, encontram-se deterioradas devido à evasão de seus moradores. Por estarem localizados no centro, onde normalmente inicia-se o processo de urbanização das cidades, muitos desses imóveis possuem valor histórico e são tombados por órgãos de preservação do patrimônio (esse era o caso do edifício paulista). Considerando que dar uso ao imóvel é a melhor maneira de preservá-lo, e que o resgate do uso residencial é fundamental para a requalificação desses centros urbanos, nada mais lógico do que reabilitar esses edifícios antigos, transformando-os em habitação social.

O conceito de Função Social da Propriedade Urbana, previsto na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelo Estatuto da Cidade em 2001, oferece as condições jurídicas legais para a realização dessa operação. Esse conceito flexibiliza o direito de propriedade individual e permite que um imóvel abandonado - seja ele público ou privado - por não estar cumprindo a sua função social, possa ser (re)utilizado em benefício da coletividade. Poucos usos atendem tão bem a função social de um imóvel como a moradia popular. Dessa forma, o déficit habitacional, a deterioração dos centros urbanos e o abandono do patrimônio histórico, problemas presentes na maioria das grandes cidades brasileiras, poderiam ser enfrentados de forma simultânea e sistêmica. Só falta mesmo é a vontade política.

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