Um livro e um caso (quase ) Eciano

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 01/05/2018 03:00 Atualizado em:

No dia 26, nosso companheiro na APL, Silvio Neves Baptista, autografou a 2ª edição de seu pertinente e bem escrito estudo sobre Eça de Queiroz, em simpática noite que reuniu amigos e intelectuais interessados na obra e na biografia do grande romancista português. O título, Um caso de abandono materno e de filiação socioafetiva, desde já intriga o leitor, deixando-o na pista do que foi a infância do autor de As cidades e as serras. Nascido em Povoa de Varzim, filho de mãe solteira que só reconheceu o filho quando este já era célebre, aos quarenta anos. Criado por um casal de pretos pernambucanos, ela ama de leite e madrinha, Eça não poderia deixar de manter, no fundo do coração, laços afetivos com o Brasil, conforme demonstrou  Paulo Cavalcanti, outro apaixonado pelo escritor português. O livro de Silvio vem trazer novas luzes sobre esse em parte pernambucano, no carinho recebido na primeira infância, e no que  inspirou nossa vida política. A essa soma de análises e conhecimento da obra de Eça, que agradecemos a Silvio, eu queria acrescentar o relato de encontro inédito, com o criador do Primo Basílio. Foi há anos, numa quase desconhecida pequena praia da Costa Azul da França, Saint Aygulf, na qual, buscando o mar após meses de jejum de água salgada, alugamos, por acaso, o andar superior de uma residência. A proprietária era nada menos que uma marquesa, omito nomes, por razões óbvias, cuja filha se tornou nossa amiga por uns tempos. Oriundas da Dordonne, onde se come a melhor cozinha francesa, esta última nos ensinou segredos culinários e vez por outra, tirava de uma grande arca escondida no porão, tesouros como latinhas de patê de ganso, de trufas, de gordura de pato, ai senhor, só de lembrar... Mas vamos ao caso. Um belo dia Mireille, a jovem nobre me mostrou um pacote de cartões postais antigos, correspondência do avô, da autoria de um brasileiro, um certo Monsieur Kêrósse e falou: você conhece? Com bela caligrafia, nem sempre legível,o autor comentava a política portuguesa da época, citava o Brasil, revelava segredos de seu estilo literário. Vagamente interessada,  abri o pacote de postais, atados por uma fita azul. E a surpresa: o tal Monsieur Kérosse era nada mais nada menos que Eça de Queiroz, em escritos inéditos, quase familiares, dirigidos ao amigo. Mireille perguntou se me interessava, ela me daria o tesouro, falei que não, imaginem. Ela guardou o pacotinho, o tempo passou, nossas férias terminaram e anos depois recebi dela um convite para nova vilegiatura “chez elle”, dessa vez apenas como amiga. Respondi a impossibilidade de aceitar a honra, estava voltando ao Brasil. Conversando com uma professora da Usp, se não me engano, comentei o episódio que a deixou indócil. Como é que você deixou passar uma coisa dessas? Forneci endereços, nomes, ela escreveu até ao padre de Saint Aygulf (Mireille tocava órgão na igreja), citei descendentes da família em São Paulo. Tudo inútil. Até hoje me pergunto que fim levaram aquelas cartas ecianas, cuja leitura invejou minha colega da Usp.

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