Um desabafo

Carla Rameri
Médica e esposa de Artur Azevedo, médico assassinado há quatro anos.

Publicado em: 14/04/2018 03:00 Atualizado em: 14/04/2018 12:39

Na próxima quarta-feira, 18/04, às 9h será o julgamento do médico Cláudio Gomes no Cremepe.  Lá, não será julgado o homicídio mas a postura insalubre que foi travada no âmbito da medicina por esse homem que atentou contra a vida, embora tenha se proposto a salvá-la. Ele será julgado pelo assédio moral e perseguição que travou contra Artur Azevedo e culminou em sua morte.

Como não poderia ser diferente... voltei a vasculhar as lembranças e refletir sobre os fatos. Lembrei que estive ao lado de Artur ao longo de sua formação e atuação como médico. E fui então apreciando cada etapa da construção desse grande profissional. Lembrei dos dias na faculdade, dos plantões, das minhas mãos trêmulas fazendo as primeiras suturas no HR, orientadas pelas mãos firmes de Artur. Lembrei da euforia na realização dos primeiros procedimentos com Dr. Geraldo Antônio. Dos amigos de faculdade, meus e dele, que viraram nossos! Lembrei da alegria das nossas formaturas. Das noites de estudo na preparação para as provas de residência. Da parceria! Lembrei também que andamos esse país inteiro fazendo provas e escolhemos ficar em SP. Lembrei depois que ele usava uma lata de leite em pó com furos no fundo para treinar seus dedos de pianista em suturas profundas. Lembrei de alguém incansável, sedento pelo conhecimento, dedicado e respeitoso pela figura humana que se colocasse a sua frente em busca de sua saúde.

Vou contar uma história que ele me contou e talvez reflita seu espirito profissional. A história do arqueiro. Há muito tempo, numa terra distante, havia um grande arqueiro. Melhor que todos os outros que aquela terra já havia conhecido. Nunca perdia uma flecha. Acertava o alvo em todas as flechadas. Um certo dia, resolveram fazer um concurso de arqueiros e prometeram um grande prêmio. Vieram arqueiros de todas as redondezas, todos interessados na premiação. Mas o grande arqueiro era o melhor e todos sabiam disso. Mas ele também estava interessado no prêmio. E muito interessado. Então, na hora determinada para arquear seu arco e soltar sua flecha, seus pensamentos eram só um: o grande prêmio. Ah! Como ele queria aquele prêmio. Acontece que ele soltou a flecha e errou o alvo. Ele não acreditou. Ninguém acreditou. Ele perdeu o prêmio tão desejado.

Na sequência, Artur concluiu: “Moral da história: concentre-se no seu trabalho e não no prêmio. Só assim poderá ser realmente bom no que faz.” Depois disso, a mente parou. Lembrei de quando decidimos vir para Recife por convite de um certo Cláudio Gomes. Caramba... teria sido diferente se tivéssemos feito outra escolha?!? Não quero alimentar perguntas sem respostas. Aqui fomos acolhidos, criamos raízes, ganhamos amigos que se confundem com família, e até tivemos um filho. Penso que a medicina perdeu Artur. Como médica, tenho imenso respeito por essa profissão. Pelo que nos propomos a fazer a cada novo dia, a cada olhar de dor. Penso também que posturas como a de Cláudio não podem ser admitidas ou passar desapercebidas. Ele maculou, manchou esse ofício. Abrigá-lo entre nós é ser conivente com uma postura doentia e selvagem. Então, na próxima quarta-feira, estaremos novamente diante da dor e das lembranças, nos fazendo fortes, na busca serena e contínua por justiça.

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