Recordar é viver

José Paulo Cavalcanti Filho
Jurista e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 13/04/2018 09:00 Atualizado em:

Foi uma semana inesquecível. Por conta, claro, do Náutico. Campeão depois de 13 anos. 13. O número, às vezes, traz azar. Outras, dá sorte. Por isso hoje, dia 13, peço licença para lembrar que dona Maria Lia sempre contou histórias da mãe, da família, do passado. Com brilho, entusiasmo e plateia garantida. Tanto que, em fins do ano passado, resolveu pôr algumas dessas histórias no papel.

Apesar de exímia datilógrafa, tem relações conflituosas com máquinas em geral. E computadores, em particular. Um problema. Porque as máquinas de escrever, que antes usava, não existem mais. Com enorme sorte conseguimos uma, num site de compras. Portátil. Olivetti! Funcionando!! E com fita!!! Ela começou, então, a datilografar o que dizia para seus seis filhos (sou só o mais velho). Esses textos foram, em seguida, passados num computador. Para formar conjuntos que (assim imaginava) seriam por ela distribuídos a filhos, netos e agregados.

Depois descobrimos que tinha escondido, em uma pasta, grande volume de textos. Escritos em outros tempos. Até poesia. Tudo de (muito) boa qualidade. Uma enorme surpresa, para todos. Escreveu a vida toda e ninguém sabia. Esses papéis foram, então, discretamente surrupiados, também editados, e depois devolvidos à gaveta onde por tempos dormiram. A nós coube apenas organizar os escritos, por temas. Um deles converteu-se em apresentação. Os outros formaram capítulos. Uma frase que citou em artigo, de García Márquez (“A vida não é a que a gente viveu. E, sim, a que a gente recorda”, em Viver para Contar), virou exergo (aquela frase que vem antes do livro começar). O próprio título do livro, Recordar é Viver, acabou sendo consequência natural de tal citação. Tudo é inteiramente dela, pois. Segue a tal apresentação:

“Sempre escrevi. E sempre à máquina. Para ninguém. De mim para mim mesma. Escrevi sobre as saudades que tinha da Bahia. Do Rio também. Do dia a dia na faculdade ou nos teatros. Das visitas ao Museu de Arte Moderna que acabara de se instalar no subsolo do Ministério da Educação – prédio que dividiu muitíssimo as opiniões dos entendidos e dos desentendidos, com seus azulejos externos desenhados por Portinari, azul e branco em riscos ondulados. Escrevi sobre tudo o que via e ouvia no rebuliço artístico do Rio, naqueles anos 1940.

“Escrevi o prazer da praia quase deserta. J.P. encontrava essas folhas escritas e se punha perplexo, e procurava me fazer explicar o porquê dessa mania besta de escrever para nada. Penso que nunca acreditou muito que era para nada mesmo e não sei que explicações rocambolescas se dava. Faz tempo que não escrevo. Por que o desejo de voltar ao papel nessa altura da vida? Será agora, e terá sido antigamente, a substituição de um padre ou de um psiquiatra? Uma vontade de transformar em palavras os pensamentos que andam fazendo acrobacias dentro desse computador fantástico e provisório que é o cérebro? Lembro do livro de Marie Cardinal, Le mots pour le dire.

“Uma explicação mais próxima da verdade seria, talvez, a vizinhança da morte. Claro que os anos que ainda me faltam cumprir são muitíssimo menos que os já gastos. É dessa proximidade que falo. Não que sinta a frialdade da Ceifadora, neste momento. Não. Sou, como sempre fui, corpo e mente. Alguns déficits hão, não posso negar. Mas nada que incomode muito. Espero, agora, que alguém me decifre no depois? Não sei e não me interessa. Escreverei como sempre fiz: para nada, para ninguém, de mim para mim mesma.”

O livro, para completa surpresa dela, foi lançado em 16 de março. No próprio dia em que completou 92 anos. Foi seu primeiro. Esperamos que não o último. Viva Dona Maria Lia!

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