A escrita e o tempo

Fanuel Melo Paes Barreto
Professor de Língua Portuguesa e Linguística/Unicap

Publicado em: 17/03/2018 03:00 Atualizado em: 19/03/2018 09:28

A escrita é uma das principais modalidades da linguagem verbal, a par com a fala. O caráter primordialmente vocal das línguas naturais foi assumido como um dos pressupostos da linguística moderna, após séculos de concentração dos estudos filológicos nos textos escritos. Contudo, abordagens mais recentes tendem a relativizar os modos como a linguagem se externaliza. Isso não quer dizer, porém, que as manifestações vocais ou gráficas da linguagem perdem, assim, importância para a investigação científica. A natureza específica dessas modalidades, as relações que mantêm entre si e com a estrutura linguística básica, seus usos na interação comunicativa, tudo isso representa uma enormidade de questões com as quais o estudioso tem que lidar.

Uma dessas questões é colocada nos seguintes termos por Florian Coulmas, em seu livro Writing Systems (2003): “há algo intrinsecamente contraditório sobre a escrita, o paradoxo de se capturar o transitório”. O linguista alude aqui ao fato de podermos fixar na escrita algo que é essencialmente fugaz, a fala. Cientes disso, diziam os medievais: “verba volant; scripta manent”; isto é, o que se fala passa, o que se escreve permanece, daí a prudência do ato da transcrição para as injunções, as declarações, os comprimissos, se oralmente expressos. Lembremos ainda que, sem a escrita, pouco saberíamos sobre as chamadas “línguas mortas”. No entanto, essa “captura” do temporal vai além da linguagem e abrange a própria história das sociedades e culturas a que a escrita serve.

A partir dos primeiros anos do século passado, intensificou-se a coleta de vestígios de uma antiga civilização que floresceu na última metade do segundo milênio antes de nossa era e se estabeleceu em boa parte do que viria a ser a Grécia Continental, estendendo-se à ilha de Creta. Tais vestígios incluiam tabletes de argila com caracteres inscritos. O conteúdo dessas inscrições permaneceu incógnito, até que, em 1952, o arquiteto inglês Michael Ventris (1922-1956) decifrou o sistema de escrita nelas utilizado. Denominado Linear B, o sistema consistia em caracteres que representavam sílabas, e não vogais ou consoantes isoladamente. Ventris descobriu, então, que a língua empregada nas inscrições era uma forma arcaica do grego, embora tivesse resistido a essa ideia até os últimos estágios do processo de decifração.

A descoberta abriu um novo panorama aos estudiosos da história da língua grega. Mas, além disso, revelou o mundo dos palácios micênicos, a Idade de Bronze da Grécia, a época cujos ecos ressoam na Ilíada e na Odisseia. Um detalhe de especial interesse: os tabletes, encontrados aos milhares, resistiram ao tempo porque serviam ao efêmero propósito de registrar a contabilidade dos palácios e eram, por isso, moldados em argila crua e ressecados após receber as inscrições. A circunstância de que os palácios foram destruídos por incêndios permitiu, com o eventual cozimento dos tabletes, que estes ganhassem consistência e durabilidade. A relevãncia do fato está em que os registros contêm dados sobre o período que antecedeu imediatamente a destruição dos palácios: um momento da história consumido pelo fogo, mas preservado pela escrita.

Com base no minucioso e paciente exame desses registros, os estudiosos são capazes de extrair informações sobre a estrutura social, a religião, as técnicas de agricutura, a indústria, o comércio e a arte da guerra vigentes nas comunidades subordinadas aos palácios da Grécia Micênica, informações que dificilmente seriam acessíveis apenas pela análise de ruínas e artefatos remanescentes em sítios arqueológicos. Para Michael Ventris, nas palavras do filólogo John Chadwick, seu colaborador, os gregos micênicos “não eram uma vaga abstração, mas pesssoas vivas cujos pensamentos ele podia penetrar”. Ao decifrar o silabário Linear B, Ventris não só resolveu um quebra-cabeça intelectual de imensa complexidade, como possibilitou que um período da história perdido no tempo fosse recobrado, porque capturado pela escrita.

Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.