Crianças e cidadania

Roberto Ghione
Arquiteto e urbanista, presidente do IAB PE (Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento Pernambuco)

Publicado em: 09/03/2018 03:00 Atualizado em: 12/03/2018 10:46

A educação começa em casa. Os valores, princípios, atitudes e ensinamentos transmitidos às crianças ficam gravados na consciência para a vida toda. Dentre eles, os comportamentos em sociedade que refletem o nível de urbanidade e civilidade, especialmente a forma de utilizar os espaços públicos e o respeito aos direitos dos semelhantes.

Um sintoma do baixo nível de civilidade nas cidades brasileiras em geral, e no Recife, em especial, é o abuso que se faz do espaço público através do transporte em automóvel. Utilizar 10m² para locomover até cinco pessoas, e a mesma área para estacionar no espaço que é de todos constitui uma das maiores afrontas às pessoas que possuem o direito de utilizar a cidade como bem coletivo e manifestação natural da vida em sociedade.

Levar e trazer crianças da escola em automóvel é um comportamento tão comum quanto criticável entre os habitantes das consideradas classes média e alta do Recife, que fomenta, nos futuros cidadãos (muitos deles irão assumir postos de decisão pública no futuro), o desprezo total pelo espaço público e a desigualdade social que atrela a sociedade ao atraso e subdesenvolvimento. Hábito praticado com a maior naturalidade, sem refletir nas consequências desastrosas que perduram, no médio e longo prazo, as piores mazelas da vivência diária na cidade.

A hierarquia dos modos de locomoção urbana consagrada universalmente (pedestre, ciclista, transporte público, transporte de cargas e, por último, automóvel particular) fica totalmente subvertida nos comportamentos da sociedade local privilegiada, que transmite subliminarmente a suas filhas e filhos o culto ao automóvel, ao mesmo tempo que descarta a oportunidade da vivência do espaço público, com todas as potencialidades e conflitos que devem ser resolvidos. Transportar crianças a pé ou em ônibus escolar fomentará a formação de cidadãos menos individualistas e mais solidários.

A evolução dos processos civilizatórios se produz em tempos de médio e longo prazos. Na contramão do mundo evoluído, a sociedade privilegiada do Recife e seus gestores insistem em prestigiar o automóvel e em perpetuar e condenar a geração vindoura às mesmas soluções ultrapassadas do presente.

O dano pior não é apenas o incômodo e estresse diário, causados pelo caos constante provocado pela invasão de carros na cidade, mas a consciência inculcada nas crianças, que assumem esse comportamento, alheio aos princípios de cidadania, como normal.

A educação começa em casa e continua na escola. O ato de ir e vir da escola é uma oportunidade de aprendizado de cidadania e de  comportamento no espaço público, desperdiçado pela mania local de privilegiar exclusivamente o transporte em automóvel particular, que acaba colocando as crianças em bolhas isoladas da vida social e urbana.

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