O cultural e o natural

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 06/03/2018 03:00 Atualizado em: 06/03/2018 10:40

É muito usual uma pretendida distinção, no homem, entre o que é cultural e o que é natural, ou entre o que é criação do homem, invenção, obra da razão que se afirma sobre a natureza e às vezes até contra ela, e o que é simples atuação de sua natureza mesma. Artificial, no primeiro caso, resultado da inventividade, de tal sorte que tudo aquilo com essa característica jamais existiria sem o homem; ou, no segundo, simplesmente natural, obrigatório, resultado do determinismo da natureza. Claro que é distinção importante, pois há realmente no homem alguma coisa que ele adiciona à natureza – a começar pelo pensamento. O conhecimento, a ciência, a filosofia, a arte, a música, tudo isso seria eminentemente “cultural”, quer dizer, não seria “natural”, no sentido de material, biológico. Sim, o homem é ao mesmo tempo natureza e cultura: há, no homem, aquilo que vem da sua natureza animal, e há também aquilo que ele próprio constrói e inventa (a sua cultura).

Mas o que seria mesmo cultural e o que seria mesmo natural, no homem? O que é, no homem, meramente “natural”? Já há, aí, uma imprecisão, porque a natureza animal do homem é somente parte de sua natureza real, uma vez que o homem é, na essência, animal racional. A natureza efetiva do homem inclui algo mais do que seu aspecto animal: inclui também essa misteriosa razão, pela qual ele se distingue e domina todos os demais seres do universo e é capaz de agir sobre a natureza e até às vezes contra ela. O artificial, no homem (a sua cultura, aquilo que ele inventa), é, portanto, também natural nele. Se o homem é animal racional, significa que sua natureza é, ao mesmo tempo, animal e racional. Portanto, ser racional faz parte da natureza do homem. Como se poderia pretender então que o “cultural” não é “natural”?

Mais ainda: nem porque o homem é animal racional, o lado natural e o lado cultural do homem são realidades independentes uma da outra, reciprocamente estranhas e incomunicáveis. A misteriosa unidade do ser humano faz com que, nele, o racional e o animal se mesclem de uma forma muitas vezes incompreensível, e assim, o natural, no homem, seja também cultural, e o cultural não se construa sem o natural.

Tão misteriosa e tão imensa é essa unidade do homem que se pode perguntar se aquilo que se pretende, tantas vezes, ser apenas “cultural”, apenas produto da cultura, não é, no fundo, mais do que “natural”, de fato até biológico, e não teria uma raiz biológica profunda. Se, ao invés de ser mera construção cultural, ou social, não decorreria de um embasamento biológico, de condicionamentos biológicos.

Levantamento fascinante seria o que enfrentasse a questão de saber o quanto há de propriamente biológico na cultura, o quanto certas instituições ou certos costumes ou certos conceitos, que alguns dizem apenas “culturais”, se enraízam, de fato, em condicionantes biológicos profundos, na ontológica divisão da espécie humana entre os dois únicos gêneros – o homem e a mulher. Pode ser que, dessa realidade biológica brutal, decorram conceitos e idealizações que alguns imaginam serem apenas culturais.

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